O movimento sindical, especialmente o do segmento dos servidores públicos, sofreu uma histórica derrota no dia 27 de outubro de 2016, quando o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por seis votos a quatro, decidiu pela constitucionalidade do desconto nos vencimentos dos servidores públicos em decorrência de dias não trabalhados por adesão à greve.
O STF assim fixou sua tese: "a administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público".
O processo – Recurso Extraordinário nº 693456/RJ - tramitava no STF desde junho de 2012e tratava da greve de servidores públicos da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), do Rio de Janeiro, ocorrida em dois meses do ano de 2006. Porém, atingirá todos os casos envolvendo greve de servidores, uma vez que a decisão possui repercussão geral. São mais de 125 processos suspensos em todo país que esperavam essa decisão.
De início, se conclui que a Justiça do Brasil realmente é morosa, tarda e, também, falha.
O recurso questionava a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que havia decidido pela ilegalidade no desconto em folha de pagamento dos dias paralisados.
A decisão do TJ-RJ fundou-se na inexistência de lei autorizadora do desconto. A “Administração só pode fazer o que a lei determina”, do contrário fere-se o princípio da legalidade. E categoricamente sentenciou: “o desconto do salário do trabalhador grevista representa a negação do direito de greve. Retira do servidor seus meios de subsistência, aniquilando o próprio direito”.
Diversos magistrados do país concordam com esse entendimento. No próprio STF destaca-se o posicionamento contra o desconto dos ministros que participaram do julgamento, contido na página oficial do Tribunal. Para Edson Fachin “a adesão do servidor público a movimento grevista não pode representar opção econômica de renúncia ao pagamento porque a greve é seu principal instrumento de reivindicação frente ao estado. Por ser um fator essencial na relação jurídica instalada a partir da deflagração do movimento paredista, a suspensão do pagamento não pode ser decidida unilateralmente”. Segundo Lewandowski “não há lei específica. Não há nenhum comando que obrigue o Estado a fazer o desconto no momento em que for deflagrada a greve”. Para esse ministro, não se pode aplicar ao servidor público o artigo 7º da Lei de Greve (Lei 7.783/1989), que prevê a suspensão do contrato de trabalho, porque o servidor público não tem um contrato de trabalho, mas sim uma relação estatutária com o Estado.
Todavia, a tese do conservadorismo jurídico tornou-se vencedora, concretizada no voto doministro relator Dias Toffoli, que havia sido proferido na sessão de julgamento de 02 de setembro de 2015, interrompida em decorrência do pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso.
No seu extenso voto de 33 páginas, Dias Toffoli ressalta a diferença das relações de trabalho existentes na iniciativa privada e estatutária, afirmando que nesta “vigora o princípio da supremacia do interesse público”, que redunda no princípio da continuidade do serviço público, implicando “que os serviços públicos não podem ser prejudicados, interrompidos ou paralisados, devendo-se, assim, haver um fluxo de continuidade, e, também, o dever inescusável do Estado em prestá-lo”.
Em relação a possibilidade do desconto dos dias parados, baseia-se no art. 7º da Lei nº 7.783/89– Lei de Greve – ao estabelecer que a “participação em greve suspende o contrato de trabalho”. “Dessemodo, os servidores que aderem ao movimento grevista não fazem jus ao recebimento das remunerações dos dias paralisados, salvo no caso emque a greve tenha sido provocada justamente por atraso no pagamento ou por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento dapremissa da suspensão da relação jurídica de trabalho e, por consequência, da atividade pública”. Conclui se tratar de um “afastamento” nãoremunerado do servidor. E assim, diante da não prestação de serviço por parte do grevista “os descontos devem ser realizados, sob pena de se configurar, como frisado, hipótese de enriquecimento sem causa”.
E mais: entendeu o STF que o gestor éobrigado a promover o desconto e disso não pode abrir mão sob pena de violar o princípio da legalidade.
Porém, essa obrigatoriedade se impõe ante a impossibilidade de o gestor simplesmente deixar de descontar os dias parados, considerando que a decisão deixa expressa a possibilidade de “compensação dos dias e horas paradas ou mesmo o parcelamento dos descontos poderão ser objeto de negociação, uma vez que se encontram dentro das opções discricionárias do administrador”.
Dessa forma, Dias Toffoli votou para que fossem fixadas as seguintes teses: i) a deflagração da greve por servidor público civil corresponde àsuspensão do trabalho e, ainda que a greve não seja abusiva, como regra geral, a remuneração dos dias de paralisação não devem ser pagos; ii) o desconto somente não se realizará se a greve tiver sido provocada por atraso no pagamento aos servidores públicos civis ou se ocorrer outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento dapremissa da suspensão da relação funcional ou de trabalho, tais como aquelas em que o ente da administração ou o empregador tenha contribuído, mediante conduta recriminável, para que a greve ocorresse ou em que haja negociação sobre a compensação dos dias parados ou mesmo o parcelamento dos descontos.
Mesmo entendendo que decisão judicial pode, sim, ser criticada, não nos interessa neste momento expor argumentos jurídicos contrários aos tomados pelo STF, pelo não desconto dos dias parados. Isso de quase nada adiantaria. Os argumentos divergentes foram categoricamente levantados pelos ministros que assim votaram.
O objetivo deste artigo é analisar, de forma breve e preliminar, a decisão tomada pelo STF – através do voto condutor e da ementa divulgada, já que o acórdão ainda será publicado - e seus efeitos concretos nas eventuais greves deflagradas.
Ressalte-se, inicialmente, que o STF consolidou definitivamente o entendimento conservador que a maioria dos tribunais e juízos do país vinha tomando por meio de seus julgados. Contexto histórico que o próprio ministro Toffoli se encarregou de registrar: “muitos são os julgados da Corte Superior que tem firmado a possibilidade do desconto”.
No Poder Judiciário do Pará, com raríssimas exceções, são proferidas decisões autorizando – ou não proibindo - o desconto dos dias parados relacionadas com greves de servidores municipais e estaduais.
Analisando mandado de segurança impetrado pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Pará – Sintepp, em 2015, a desembargadora Célia Regina de Lima Pinheiro, do Tribunal de Justiça do Pará, negou liminar sob o fundamento de que “o STJ, em greve deflagrada por servidores públicos, entende ser legítimo o desconto, em seus vencimentos, pela Administração, dos dias não trabalhados”. Decisão mantida pelas Câmaras Cíveis Reunidas desse Tribunal (Proc. nº 0003678-37.2015.8.14.0000).
Portanto, o STF entregou nas mãos dos prefeitos e governadores um verdadeiro instrumento inibidor de greve. As frequentes ameaças de corte de pontos feitas por gestores para impedir o movimento grevista agora virão com mais força e efeitos devastadores.
Mas, o desconto dos dias parados será a única medida a ser tomada pelo gestor público?
Antes de responder essa questão, torna-se necessário dizer que o STF não vedou o exercício do direito de greve aos servidores públicos, até por não possuir esse poder, posto que previsto na Constituição Federal. Esta Corte “não está a negar oexercício do direito do servidor público de realizar greve”. E disse mais: “a participação do servidor público em um movimento paredista não implica a prática de um ilícito”. Posicionamento que se coaduna ao previsto na Súmula nº 316-STF, ao estabelecer que “a simples adesão à greve não constitui falta grave”.
No voto do ministro Toffoli esse tema é tratado com destaque: “e por não se tratar de prática de um ilícito, esta Corte já decidiu que se esse direito for exercido sem abusos, a participação do servidor num movimento grevista: i) não pode gerar a imediata exoneração de servidor público em estágio probatório (ADI nº 3.235, Relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes, DJe de 12/03/10); ii) a simples circunstância de o servidor público estar em estágio probatório não é justificativa para sua demissão com fundamento em sua participação por período superior a trinta dias (RE nº 226.966/RS, Primeira Turma, Relatora para acórdão a Ministra Cármen Lúcia, DJe de 21/8/09); iii) a demissão ou a exoneração não precedida de procedimento específico, com observância do direito à ampla defesa e ao contraditório, implica a nulidade do ato administrativo (RE nº 222.532 Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ de 1º/9/2000)”.
O problema é que o Poder Judiciário considera abuso de greve ocupações de prédios e até de vias públicas, manifestações naturais do movimento grevista.
Na decisão ficou consignada, ainda, a alternativa de realização de acordo paracompensação com os servidores grevistas, que no caso da categoria do magistério possui a peculiaridade da necessidade de reposição para garantia do ano letivo. Por este fato e a depender da intensidade da greve essa discricionariedade administrativa poderá ser relativizada.
Por outro lado – e isso é de grande importância – o desconto não deve ocorrer “se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público".
Ora, a greve ocorre justamente em virtude de condutas ilícitas tomadas pelos gestores públicos. No âmbito da educação estadual, por exemplo, a greve é normalmente ocasionada pelo não pagamento do valor correto do piso profissional do magistério e outros diversos direitos previstos em lei violados pelo governo. Ou seja, greve provocada por condutas ilícitas do Poder Público.
Nesse sentido, analisando literalmente a malfadada decisão do STF, o desconto dos dias parados estará condicionado a demonstração de que a greve não foi deflagrada por tais condutas ilícitas. E caberá ao Tribunal de Justiça decidir essa questão.
A derrota significativa dos servidores no STF, já em curso nas últimas décadas - mas que parece passar despercebida - é o ápice da judicialização do movimento grevista. E cabe a categoria mudar o eixo dessa situação, mesmo ciente do longo e difícil caminho a ser percorrido.
Walmir Brelaz
Advogado - Coordenador da assessoria
jurídica estadual do Sintepp.
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