No próximo mês de outubro, a norma que dispõe sobre o exercício da profissão do jornalista completará quarenta anos. Trata-se do Decreto-lei nº 972/1969 com suas posteriores modificações.O seu art. 4º estabelece como requisito básico para o exercício da profissão de jornalista o registro no Ministério do Trabalho. E o pedido deste registro deve ser instruído com o diploma de curso superior de jornalismo - ou de comunicação social, habilitação jornalismo -, conforme prevê o seu inciso quinto (V).
Também em um mês de outubro, de 1988, foi promulgada a atual Constituição Federal, instituindo-se uma nova ordem jurídica no Brasil. E assim, por ser a Lei Maior do País, nem uma outra norma pode com ela se confrontar, sob pena de ser considerada inconstitucional.
E o que acontece com as leis vigentes antes dessa Constituição? Neste caso, devem ser adequar, serem condizentes com o texto maior, enfim, serem recepcionadas. Caso contrário - evidentemente - serão consideradas "não-recepcionadas" e imediatamente revogadas.Portanto, a decisão do Supremo Tribunal Federal tomada no dia 17 de junho de 2009, limitou-se, tão somente, a declarar "a não-recepção do artigo 4º, inciso V, do Decreto-lei nº 972/1969". O ministro Marco Aurélio, dos nove presentes, foi o único que divergiu do relator Gilmar Mendes.Percebe-se que a conclusão da decisão é demasiadamente simples. Porém, seus fundamentos, e sobretudo seu significado, são de uma magnitude imensurável. O próprio ministro Gilmar Mendes - numa de suas raríssimas opiniões consensuais - em seu voto alerta para esse aspecto: "O julgamento do mérito da questão, que passamos agora a analisar, repercutirá diretamente sobre o trabalho desses jornalistas e, dessa forma, sobre os meios de comunicação e a Imprensa em geral no Brasil. Não se pode menosprezar, também, a repercussão deste julgamento nos diversos cursos de graduação em jornalismo, com implicações sobre a vida dos alunos, professores e, enfim, das universidades e faculdades".
Para questionar judicialmente esse dispositivo que, em síntese, reconhecia como jornalista apenas as pessoas que possuíam o diploma correspondente e registradas no Ministério do Trabalho, em 2001, o Ministério Público Federal - provocado pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo - ingressou com uma ação civil pública na 16ª Vara Federal de São Paulo, contra a União.
Ainda nesse ano, foi concedia liminar para suspender a obrigação de ter diploma de curso de jornalismo para a atividade jornalística. No mérito, em sentença, julgou parcialmente procedente o pedido para "determinar que a União não mais exija, em todo o País, o diploma de curso superior de jornalismo para o registro no Ministério do Trabalho para o exercício da profissão de jornalista".
No final de 2005, o Tribunal Regional da 3ª Região, julgando recurso da União e da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) reformou a decisão, para, novamente, determinar a exigência do diploma.Por sua vez, já como relator do recurso extraordinário no STF, Gilmar Mendes, em decisão de 16 de novembro de 2006, deferiu medida cautelar para conceder efeito suspensivo ao recurso extraordinário, ou seja, possibilitar o exercício da profissão de jornalismo sem exigência do respectivo diploma. Decisão que se confirmou no mérito, em junho deste ano, com acórdão ainda não publicado.
Antes de discorrer sobre o significado judicial dessa histórica decisão, é importante que saibamos, mesmo que de maneira superficial, quais os argumentos jurídicos que a fundamentaram.
O STF aceitou - e defendeu efusivamente - a tese de que a exigência do diploma de jornalismo para o exercício da profissão de jornalista viola o disposto no o art. 5º, incisos IX e XIII; art. 220 e § 1º da Constituição Federal, que dispõem: "É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença"; "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer"; "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição; "nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV".
Embora o voto do ministro Gilmar Mendes repouse num profundo embasamento de 91 páginas, a decisão pode ser assim resumida: a exigência do diploma de jornalismo para o exercício da profissão de jornalista fere o princípio da liberdade de expressão de outros profissionais; e se constitui em restrição desproporcional para o livre exercício da profissão, causando embaraço a plena liberdade de informação jornalística.
O impacto dessa decisão irrecorrível pode ser observado em efeitos pretéritos e futuros. Considera a exigência contida no decreto de 1969 revogada desde 1988 e considerará inconstitucional qualquer lei ou ato que imponha a exclusividade do diploma de jornalismo para o exercício dessa profissão.As conseqüências jurídicas, no momento, são inalcançáveis. Muitas das quais a serem identificadas com o passar do tempo, e seus questionamentos infindáveis. Cito alguns a titulo de exemplos: possibilidade de aprovação de lei no Congresso para resgatar o dispositivo revogado; continuidade da profissão de jornalista; validade das leis estaduais e federais que exigem diploma; legalidade da situação de jornalistas que ingressaram através de concurso público; validade e necessidade dos cursos superiores de jornalismo; e novas exigências para que alguém seja considerado jornalista.
O fato é que, independentemente de opiniões, a decisão do STF significa uma ruptura de paradigma, e como tal merecerá infinitas abordagens de vários ângulos, até que seja digerida, degustada ou vomitada.
Walmir Brelaz - advogado
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