quarta-feira, 16 de abril de 2008

MASSACRE DE ELDORADO DO CARAJÁS: 12 ANOS

17 DE ABRIL DE 1996: Versão das vítimas*
A quarta-feira do dia 17 de abril de 1996 amanheceu com um sol intenso. Seguindo a rotina, os sem-terra se levantaram entre 4 e 5h da manhã. Os coordenadores se ocupavam da seleção das pessoas que embarcariam nos ônibus, com preferência para as mulheres, crianças e idosos. O restante seguiria em caminhada até Marabá.Às 11h, compareceu ao local o oficial da PM tenente Jorge Nazaré Araújo dos Santos e “informou ao acampamento que o acordo estava desfeito. Nada mais seria entregue. Nem ônibus nem comida”.[1] E a acrescentou: “foi impossível atender a pauta (...) Se fez de coitado e disse: pois é gente, é uma pena, mas vocês têm que fazer pressão”.[2]Um fato estranho ocorreu às 12h. Surgiu no local um caminhão “gaiola” transportando apenas um boi. O motorista Manuel Lima de Souza o colocou atravessado no meio da pista e se infiltrou na manifestação dos sem-terra.[3] Antônio Alves de Oliveira ainda lembra, com desconfiança, desse exato momento: “vocês não vão ocupar? Já estou fazendo uma barricada! Mas sendo que a barricada seria pra matar nós. Esse cara devia tá sabendo de toda trama”.[4]
No mesmo horário, os sem-terra resolveram ocupar novamente a rodovia PA-150, precisamente no trecho da “Curva do S”. Uma parte de 16 grupos ocupou a rodovia no sentido de Parauapebas e outra de igual número ocupou a área em direção a Marabá, com uma distância entre si de cem metros.Aproximadamente às 16h, chegou do município de Parauapebas a tropa comandada pelo major José Maria Pereira Oliveira, composta de 69 policiais fortemente armados.[5] No local, mantiveram-se em silêncio a uma distância de aproximadamente 150 metros, apenas observando.[6]E a tensão começava a tomar conta dos sem-terra.
Rubenita Justiniano declarou que não estavam se preparando para qualquer confronto, tanto que a propalada barricada de arroz que passou a ser divulgada como uma forma de demonstração de que os sem-terra estavam se armando para um confronto, nunca existiu. Eram volumes de alimentação que estavam à beira da estrada.[7]
Às 16h e 30 min, chegou a tropa do 4.º Batalhão da Polícia Militar de Marabá composta por 85 policiais, comandada pelo Coronel Mário Colares Pantoja, com o propósito de desobstruir a pista, conforme posteriormente justificado pelo Secretário de Segurança Pública do Pará Paulo Sette Câmara: “porque a estrada não poderia ficar obstruída e a desobstrução dela era uma necessidade óbvia”.[8]
Em seguida, sem manter qualquer contato verbal com os sem-terra, começaram a atirar contra estes, inicialmente para cima e depois para baixo, além de efetuarem lançamento de bombas de efeito moral.E chegaram e deram duas rajadas pra cima (...) E nós levantamos as mãos pedindo paz, e dizendo que não queria guerra e sim terra.[9]
O ataque imediato da tropa que estava do lado de Marabá, sem qualquer diálogo, é sustentado por várias outras vítimas:
“Os policiais chegaram e começaram a fazer fogo na gente, matando mesmo, logo no começo”.[10]
“A hora que eles chegaram foi logo atirando, mas naquela hora atiraram pra cima. Aí, depois que a gente encostou, ele falou: mata essas desgraças toda, gente. Aí disgramou a tiroteia (...)”[11]
Após esse primeiro ato, os sem-terra correram. O primeiro a morrer foi Amâncio Rodrigues dos Santos[12]. Um lavrador de 42 anos. Ele era surdo, e provavelmente por este motivo não ouviu os disparos e os gritos para se afastar do local.
“A gente gritava para ele correr, mas não adiantava. Os soldados chegaram perto e atiraram na cabeça.”[13](...) quando recuamos esse Amâncio ficou adiantado dos outros, porque era surdo, não tava prestando atenção. Aí os homens foram e mataram ele (...) derrubaram ele e bateram nele. E depois me atiraram também e eu caí na pista (...) O surdo morreu por isso, logo na frente primeiro do que todos (...) Primeiro ele atirou na perna dele e ele caiu, quando ele caiu, mandaram ele soltar a faca que ele tinha na mão, ele não soltou e atiraram na cabeça dele e mataram. Ele prestava muito era pra bater num tamborzinho e dançar. Ele era alegre. No grupo dele era uma festa direto com ele.[14]
Por sua vez, os sem-terra que estavam do lado de Parauapebas correram de forma inversa. Nesse momento avançam com paus e pedras contra os policiais.As pessoas dizem: por que vocês avançaram? É porque esse grupo que tava do lado de Parauapebas, ouviu a rajada e correu pra saber o que era, certo? E esse grupo já vinha de lá correndo, aí começou a tumultuar. Quando nós corremos, esse grupo do Major Oliveira tava tudo entrincheirado já, aí partiram pra cima atirando também. Esse grupo que saiu atirando, que não aparece na televisão, foi o que mais matou (...) só do meu grupo morreram cinco... e dois foram baleados ... eu só não fui morta porque eu saí da posição (...)[15]
Do outro lado, os policiais da tropa de Parauapebas passaram a atacar imediatamente. E segundo várias vítimas, foram os que mais agiram com violência, foram os que mais mataram.Domingos dos Reis da Conceição, que foi atingido com um tiro na perna, acusa os policiais de Parauapebas, dizendo que foram “os mais perversos, atiravam para matar mesmo.”[16] “O pessoal de Marabá matou muito pouco, agora o resto foi matado pelo pessoal de Parauapebas”.[17]
De acordo com o Ministério Público, com base em depoimentos de várias testemunhas ouvidas durante a instrução processual, inclusive, o cinegrafista Oswaldo Araújo, “para o lado da tropa de Parauapebas é que tombaram a maioria dos mortos e feridos”.[18]
É difícil imaginar as razões e emoções que motivaram os sem-terra, munidos apenas de paus e pedras, a partirem para cima de policiais fortemente armados. Em seus depoimentos, observa-se que foram envolvidos por um sentimento, misto de coragem e revolta, sobretudo, ao verem alguns de seus companheiros feridos, atirados ao chão. “Ninguém teve tempo de ter medo nesse momento (...) ninguém tinha noção de nada, neguinho corria é pra cima mesmo. É difícil você tá no meio de um fogo desse aí. Você tá vendo um irmão caído (...) você vai, mesmo que morra também”.[19]
Após tomarem consciência de sua infinita desvantagem, os sem-terra correram em direção à mata, sendo perseguidos pelos policiais.Do instante da ação militar, muitos sem-terra ainda guardam recordações que impressionam, inclusive, pelos detalhes.A polícia atirava no nosso rumo e gritava que ia tocar fogo nos barracos. O jeito foi correr, mesmo ferido. Só quando corri mais de dois quilômetros e vi que não corria mais perigo é que comecei a sentir dores e vi que estava ferido na virilha. A minha coxa eu nem sentia mais de tanta dor.[20]
Na hora que mataram o primeiro, do lado de Marabá, os homens que tava do meu lado correu tudo pra lá pra vê o que tava acontecendo. E as mulheres com as crianças correram para o lado que eu tava. Naquela hora a gente tava na segurança pedindo pra eles não atirar (...). E que eu lembro muito bem é quando eles entraram em ação atirando, até quando um companheiro que tava perto de mim, que era o Altamiro, quando ele caiu, aí ele pediu para levantar ele que ele tava baleado. Foi o momento que eu peguei ele, foi a hora que eles me atingiram com uma bala nas costas.[21]Um momento que eu não esqueço, também nunca, foi quando nós entrou naquela casa, já escondendo deles mesmo. E eles veio atrás de nós e quebrou a porta e entrou pra dentro, nós tava em umas cinqüenta pessoas, só mulher e criança, nesse meio tinha uns dois homens. E eles pegou e botou nós pra fora e botou nós todo deitado, sem direito a olhar para lado nenhum. E nós escutava só tiro, só tiro. E aí eu vi eles arrastando as pessoas, as pessoas corriam e eles corriam, já as pessoas baleadas. Eles arrastavam pelas estradas e acabavam de matar. Muitas pessoas podiam ter sobrevivido, mas elas estavam baleadas e eles arrastavam e acabavam de matar. Foi um momento muito triste que eu acho que nunca esqueço daquele momento terrível. E aí, depois que a gente viu um tanto de gente morta, eles mandou a gente correr e não olhasse para trás.[22]
Alguns trabalhadores rurais relatam que também foram espancados e humilhados por policiais.
“Me espancaram, me colocaram no meio da pista, me bateram com o cacetete nas costas, me chutaram na cabeça, e daí só me bateram direto, me chamando de bandido, sem vergonha, assassino”.[23]
Eu não caí no local, eu corri, quando eles já me pegaram mandaram eu deitar no chão, e colocaram a arma na minha cabeça. E um perguntou para outro: acaba de matar essa desgraça, e ele falou não, manda ele correr. E ele mandou levantar e correr e ir direto no hospital dizer que era uma bala vadiada que me pegou. Eu pedi para eles deixarem eu ir pela estrada, pois eu não agüentava andar mais pelo meio do mato. Ele falou tem três minutos pra tu e dois já passou.[24]
A polícia juntou todo mundo que estava num barraco e mandou a gente deitar na lama. Depois, quando eles quiseram, disseram pra gente correr pra dentro do mato.[25]
No início dos tiros, um dos líderes mais expressivos, Oziel Alves Pereira, no carro som pedia calma: “não corram que é bala de festim, ninguém sai da pista”.[26]
Entretanto, quando percebeu a gravidade dos fatos, refugiou-se em uma cabana próxima do local.“Aí quando ele viu morrer muita gente, foi que ele falou que ele não era covarde, ele tinha que ir com os companheiros dele, foi no momento que a polícia pegou ele”.[27]
Em seguida, foi arrastado pelos policiais e executado. “Foi atingido quatro vezes por arma de fogo na cabeça”.[28]
O “Oziel foi executado pelo MAJOR PM OLIVEIRA, com dois tiros de revólver”.[29]
Ele tava com um brinquinho na orelha, ele tirou o brinquinho e entregou pro meu menino e disse: “olha você guarda esse brinco, se eu voltar você me entrega, se eu nunca mais voltar você guarda por lembrança”. E ele saiu com ele no meio da estrada, um bateu com o cabo de uma arma na cabeça e ele caiu e o outro atirou. Pegou no cabelo dele, suspendeu e atirou.[30]Uma das histórias mais impressionantes ocorreu com o lavrador Inácio Pereira, 56, pai de dezesseis filhos, dentre os quais Raimundo Lopes Pereira, morto no massacre.Do momento do massacre ele ainda lembra: “eu vi o meu menino morto e eles queriam matar minha menina, e nessa hora parece que o mundo acabou pra mim”.[31]
Desmaiado, confundido com um morto, foi arrastado pelo chão e jogado no mato, em seguida o colocaram no carro e outra pessoa por cima dele.Eu embaixo desses mortos (...) nessa hora o peão que estava em cima de mim gemeu. E alguém disse: “olha, aqui tem um gemendo, o que a gente faz com ele? Você não sabe, não? É matar!”. E ele voltou e deu um tiro. Me banhou todinho de sangue e com isso eu acabei de morrer de novo.[32]
Logo após o acontecido, as vítimas foram levadas ao hospital mais próximo para análises preliminares e identificações, quando, então, descobriram que Inácio Pereira estava vivo.A desobstrução da rodovia durou aproximadamente 15 minutos, entretanto, a operação no local aproximou-se das 19 h. “Até seis e meia ainda tava queimando tiro”.[33]
Os policiais “organizaram” em fila os mortos do massacre, cobrindo-os com lona preta na beira da estrada, para logo em seguida levá-los ao município de Curionópolis.[34]
* Texto retirado do livro "Os sobreviventes do massacre de Eldorado do Carajás", de Walmir Brelaz, 2006-Belém.
[1] O MASSACRE de Eldorado, 1999, p 15. No mesmo sentido, consta na Denúncia do MP (Processo no 786/96, fl. 41).
[2] Rubenita Justiniano.
[3] Não se teve mais notícias desse motorista.
[4] Antônio Alves. Para o Ministério Público, em sua Denúncia (p. 42), foram os sem-terra que colocaram propositadamente o caminhão.
[5] Foram entregues ao Instituto Médico Legal as seguintes armas das duas tropas: 4 metralhadoras; 4 submetralhadoras; 5 revólveres Taurus calibre 38; e 28 fuzis tipo mosquefal, calibre 7,62 mm. Segundo a denúncia do Ministério Público, a tropa veio em dois ônibus da empresa Transbrasiliana, uma camionete D-20 e um Volkswagen gol. Processo no 786/96.
[6] Rubenita Justiniano.
[7] Ibidem.
[8] Jornal O LIBERAL, Painel, 19 maio 1996, p. 03.
[9] Josimar Pereira. Depoimento verbal ao autor, em 09 Jun. 2004.
[10] Manoel Pereira da Silva. Jornal O LIBERAL, Belém, 20 maio 1996, Caderno Especial, p. 8,
[11] Gabriel Fagundes Moreno.
[12] FRENETTE, Marcos. O dia do massacre. Revista Caros Amigos. n. 12, p. 5, abr. 2002. Fato confirmado por vários depoimentos.
[13] Francisco Clemente de Oliveira. Revista Veja.Disponível em: <http://www.veja.abril.com.br/idade/em_dia/carajas_capa.html>. Acesso em 17.09.2004.
[14] Josimar Pereira.
[15] Rubenita Justiniano.
[16] Jornal O LIBERAL, Painel, 19 maio 1996, p. 03.
[17] Josimar Pereira.
[18] Processo no 786/96 - Alegações Finais do Ministério Público. Disponível em:Acesso em: 13.03.04
[19] Antônio Alves.
[20] Jurandir Gomes dos Santos. Jornal O LIBERAL, Painel, 19 maio 1996, p. 3.
[21] Alcione Ferreira da Silva.
[22] Maria Abadia Barbosa.
[23] Francisco Vieira Martins.
[24] Alcione Ferreira da Silva.
[25] Maria Raimunda. Jornal O LIBERAL, Especial, 20 de maio 1996, p. 8.[26] Rubenita Justiniano.
[27] Antônio Alves.
[28] Antônio Alves. Jornal O LIBERAL, Especial, 20 de maio 1996, p. 9.
[29] Luiz Vanderley Pereira (Processo no 786/96. Denúncia do MP, fl. 46).[30] Maria Abadia.
[31] Inácio Pereira.
[32] Ibidem.
[33] Antônio Alves. O coronel Mario Colares Pantoja, em entrevista concedida ao jornal O LIBERAL, de 02 de outubro de 2005, afirmou que o massacre “não durou mais do que cinco minutos”.
[34] Outros fatos ocorridos no momento do massacre ainda serão relatados neste trabalho.

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