domingo, 2 de março de 2008

A lei e a realidade

Demissão de temporários é parte de dramas familiares
Demitidos que sofrem de doenças estão na iminência de sofrer privações

Godofredo dos Santos Pereira tem 55 anos e aos seis anos foi arrancado da família por ser portador de hanseníase, doença da qual até hoje carrega seqüelas. Terezinha de Jesus Pinto Silva tem 59 anos e cuida do marido com um câncer de próstata em metástase óssea. Ercília Campos da Silva também cuida do pai, portador de doença grave e internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Essas pessoas, além dos problemas de saúde na família, são protagonistas de outro drama: a perda do emprego. São servidores temporários que constam na lista do governo apenas como números a serem 'distratados' - ou demitidos - do serviço nada temporário em que se transformaram as contratações no Estado, que para Godofredo, Terezinha e Ercília significaram de dez a 17 anos de suas vidas.
Os advogados Edvaldo e Roberta Caldas, que defendem os temporários, acusam o governo de não adotar qualquer política de assistência aos casos críticos, o que também seria um descumprimento à Constituição Federal. Eles avaliam que a postura do Ministério Público do Trabalho, em sua ação civil pública, e ainda da Justiça do Trabalho e do governo do Estado foi a de cumprir 'ao pé da letra' o artigo 37 da Constituição, dispositivo que trata do acesso aos cargos públicos por meio de concurso. Essa interpretação levou a demissões sem maiores critérios.
'O artigo 1º da Constituição Federal é norteador de toda a nossa Carta Magna e prevê, entre outros direitos, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Nós não consideramos justo que se cumpra apenas o artigo 37, que trata do ingresso no serviço público, sem levar em consideração outros direitos constitucionais tão importantes', afirma Edvaldo Caldas.
O Estado ainda tem 14.800 servidores temporários em atividade, 80% deles na faixa entre 40 e 58 anos de idade. Alguns foram demitidos faltando pouco tempo para a aposentadoria por idade, mas sem tempo de contribuição suficiente para aposentadoria proporcional. É o caso de Terezinha Pinto da Silva, demitida aos 59 anos. Para os advogados, são 14 mil famílias que ainda serão privadas de direitos constitucionais relacionados à dignidade garantida pelo trabalho. 'Além disso, as demissões farão com que a sociedade pague um preço muito alto, já que não haverá tempo suficiente para preencher com concurso todas as vagas nos serviços essenciais, fora as ações idenizatórias que serão movidas pelos demitidos e que resultarão em mais um ônus arcado pela sociedade', afirma Roberta Caldas.
CONTRATAÇÕES
Ela diz ainda que nos últimos meses o Diário Oficial do Estado (DOE) tem publicado de forma sistemática a contratação de novos temporários. 'Em um momento em que o Estado fala tanto em demitir para cumprir a lei, para realizar concursos, é muito estranho que continue a investir em contratos temporários, que em um futuro bem próximo poderão gerar tantos problemas quanto os que o Executivo enfrenta hoje', afirma a advogada, que considera o tratamento dado aos temporários o mesmo do trabalhador escravo. 'Os temporários foram vítimas do regime de trabalho escravo. Não têm direito a idenizações porque não são seletistas, mas também nunca tiveram os direitos de servidor público, embora contribuíssem com impostos e com o regime previdenciário. No entanto, o Estado enriqueceu e sustentou-se durante muitos anos com a força de trabalho dessas pessoas, e por isso vamos lutar para sensibilizar a Justiça do Trabalho', afirma.
Edvaldo Caldas cita o exemplo de uma sentença em que houve uma análise diferente pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 31 de outubro do ano passado. O ex-prefeito Sérgio Moraes, de Santa Cruz do Sul, respondia processo pela contratação de 308 servidores temporários entre abril de 2002 e novembro de 2003 e foi absolvido. A ministra Carmen Lúcia, relatora do caso, votou pela improcedência da ação penal, julgando ausência de dolo (vontade, inteção clara de praticar algum ato) por parte do gestor, inclusive citando parecer do Ministério Público Federal baseado na própria Constituição, que prevê a contratação de servidores temporários, por tempo determinado, 'para atender a necessidade termporária de excepcional interesse público, devendo a lei fixar as circunstâncias dessa contratação temporária'. No entanto, a própria Constituição Federal não dispõe sobre quais seriam tais 'circunstâncias excepcionais' dessas contratações.
Por outro lado, o advogado lembra que o Congresso Nacional, que pode legislar sobre a questão, deixou de molho a votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 054), que versa sobre a manutenção dos temporários com mais de dez anos de serviço público. 'Além disso, em nenhuma momento houve pressão dos executivos estaduais ou do Poder Judiciário para que os parlamentares apresentassem também propostas de critérios de demissão ou até de idenização aos servidores que ficaram anos na condição de temporários. No Pará, o governo estadual passou 17 anos propondo orçamento para pagamento de temporários, e isso nunca foi contestado pela justiça', ressalta Caldas.
Os dois advogados, que atuam na defesa dos interesses da Comissão de Servidores Temporários do Pará, que integra a Associação Norte/Nordeste de Servidores Temporários, defendem a realização de concursos públicos, mas garantem que, mesmo se houvesse o preenchimento de todas as vagas anunciadas, os servidores temporários ainda seriam necessários. 'Os sistemas de saúde, educação e principalmente o sistema penal terão seu funcionamento prejudicado com todas essas demissões. Nós temos indicadores de que mesmo se todas as vagas anunciadas para os concursos fossem preenchidas, o ideal é que elas se somassem ao atual quadro de servidores para garantir o bom funcionamento dos serviços', afirma Roberta.
Suzete Cardoso e Tamar Dias, que tiveram seus distratos publicados no dia 31 de dezembro passado, integram a Comissão dos Servidores Temporários que tem feito as mobilizações de forma independente dos sindicatos ligados à central Intersindical. Segundo elas, a próxima mobilização em Brasília, com caravanas de todo o Brasil, ocorrerá ainda este mês de março.
Notícia da demissão causou princípio de infarto
Terezinha Pinto da Silva teve seu distrato publicado no dia 31 de dezembro passado sem aviso prévio. Ela é auxiliar de enfermagem e foi trabalhar em seu plantão no dia 1º de janeiro. Só ao chegar no Centro de Recuperação de Dependentes Químicos da Secretataria Estadual de Saúde (Sespa), onde trabalhava, ficou sabendo que estava sem emprego. Seu marido era seu dependente no Plano de Assistência ao Servidor (PAS). Ele perdeu a assistência médica que tinha para o tratamento do câncer, que está em metástase óssea.
Terezinha perdeu o salário que sustentava a casa, comprava a alimentação e os medicamentos do marido. Além do emprego, ela perdeu também a esperança. 'Eu trabalhava cuidando dos dependentes químicos, aplicando medicamentos, e sempre desempenhei bem minha função. Quando perdi o emprego, cheguei a ter um princípio de infarto, e sei o quanto é difícil encontrar outro trabalho nessa idade, faltando um ano para me aposentar. Hoje rezo por essas pessoas, para que elas tenham condições de ver quem é o trabalhador que está sendo demitido', diz.
No caso de Ercília, que trabalha há 17 anos na Fundação Tancredo Neves, o distrato pode sair a qualquer momento. Seu pai também perderá o direito ao leito onde está hospitalizado pelo PAS. Já Godofredo, que até hoje se trata das seqüelas da hanseníase, teve seu distrato publicado em 31 de dezembro, mesmo estando de benefício. Não recebeu o salário de janeiro e, para sua surpresa e da comissão de temporários, a Secretaria Estadual de Administração (Sead) emitiu seu contracheque de fevereiro e pagou o salário referente a este mês. Na prática, a Sead assinou embaixo do seu erro administrativo, já que o servidor de benefício não poderia ser demitido, mesmo sendo temporário.
SATISFAÇÃO
Godofredo tem seis filhos e 12 netos, dos quais seis vivem com ele, que passou toda a vida na colônia de hansenianos de Marituba. Quando estava com as seqüelas sob controle, trabalhou dez anos no Abrigo João Paulo II, que até hoje acolhe pessoas portadoras de seqüelas de hanseníase e sem referência familiar. Há dois anos, ele teve novas complicações e entrou de benefício, mas mesmo assim foi demitido. Na quinta-feira (28), vibrava ao receber o contracheque. 'Não me deram qualquer explicação, mas pelo menos esse mês vou poder cuidar um pouco melhor da alimentação dos meus netos', revelou.
Os servidores Maria José dos Santos Peres, que aos 58 anos aguarda seu distrato da Santa Casa; Wagner Azevedo e Rita Pontes, da Sespa, e Igino Nunes, da Seop, que se fantasia para levar alegria às manifestações dos colegas, são outras faces do serviço temporário que durou de dez a 17 anos, caso de Igino.
Em nota, a Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Governo informou que os únicos critérios observados pelo Executivo para as demissões são os determinados pela Justiça: servidores temporários com mais de seis meses de contratação. O governo, diz a nota, chegou a negociar o adiamento do total de demissões, antecipando o número de 2 mil distratos exigidos pela Justiça no ano passado, mil até o mês de novembro e mil até o dia 31 de dezembro. Desde então, os distratos vêm sendo publicados pouco a pouco, de acordo a disponibilidade de cada órgão. (C.S.)
Jornal O LIBERAL, 01.03.08 - CLÉO SOARES Da Redação

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